sexta-feira, 29 de julho de 2011

Monografia de pós-graduação VIII

3.2-Bosch: o anacoreta

Seguindo-se a analise de Panofsky de iconografia, seria preciso atentar-se a obra de Bosch intitulada As Tentações de Santo Antão ’tríptico realizado por volta de 1505 a 1506. Esta obra se encontra no Museu Nacional de Arte de Lisboa. O tema do anacoreta é bem recorrente na obra de Bosch, ele pintou São João no Deserto, São Jerônimo em prece e São Tiago e o Mago.
Nestas obras e na qual a análise ocorrerá o tema da melancolia (reflexão da vida) parece ser sua especialidade, demonstra um apego e certo fascínio pelos eremitas, ele diversas vezes se coloca no meio deles em suas pinturas. Uma outra característica do artista é a predileção pelos tripticos, para Bosch existe uma necessidade de criar obras com narrativas mais extensas e que requer paciência do observador para os mínimos detalhes que coloca.
Em termos de uso de disposição do quadro no painel central, temos toda uma ocupação do quadro por figuras que parecem se mover o tempo todo. Do primeiro plano ao ultimo não existe estaticismo, tudo é ação. Partindo do último plano temos uma cidade, provavelmente uma cidade egípcia, pois Santo Antão que falecera com 150 anos era egípcio. Outra suposição é a própria cidade do pintor ardendo em chamas como uma Gomorra bíblica pela ira divina, ou lembrança provável do artista de um suposto incêndio que sua cidade sofrera anos atrás. Segundo o biografo Walter Bosing, (2006) o incêndio denotaria uma enfermidade da época ligada ao santo:
(...) o fundo sinistro e faz lembrar o ergotismo epidêmico que se propagou na Idade Média, ou ‘fogo de Santo Antão’, pois as suas vítimas invocavam o seu nome para o conforto. A relação entre esta doença e o santo atormentado pelos diabos pode ter surgido devido ao facto de, durante uma determinada fase da doença, os doentes sofrerem de alucinações, pensando que eram atacados por animais selvagens e demônios. (BOSING, 2006, p. 86).

De toda forma a relação fogo/pecado e a luta do santo contra tudo o que lhe distancia do plano divino é o que transparece em sua obra. Os atos de flagelo que o santo provoca em si mesmo através de orações diárias e imolações para deter às investidas da sucubus (demônio-fêmea) que lhe aparece na tenda no volante direito e impede a sua meditação, são trabalhados por Bosch com muitos detalhes e de certa forma ganham uma leitura dele bastante pessoal da obra. Já que as lendas do santo que lutou contra os demônios por Bosch, ganham um ar de testemunho ocular. Como no volante esquerdo em que o santo aparece voando sobre as asas de bestas como era comum na lenda.
O plano principal é todo cenográfico, vemos os personagens como pequenos bonecos colocados em lugares estratégicos para que o olhar do observador veja ação em separado e depois em conjunto. No centro do quadrado está Santo Antão em posição de oração. Ao lado dele, homens e mulheres e um ser com face de porco banqueteiam como para que provocá-lo.
Do lado do santo também está uma mulher com cauda de rato saindo do vestido, como que o assediasse, um exemplo de Luxúria. Em sua frente uma freira velha com a mão estendida pedindo esmola, como os frades mendicantes que na maioria eram odiados pela comunidade. No centro do tablado temos um frade lendo ou distorcendo as Escrituras guiadas por uma criatura que lhe sussurra no ouvido.
Na frente do santo o que parece um oratório com um Cristo ao fundo, como se o segundo plano simbolizado pelo crucifixo do oratório estivesse ligado ao primeiro. Do lado direito do padre que destorce a bíblia temos uma mulher árvore e outros monstros. Abaixo da cena central temos uma tenda em forma de esfera de onde sai monstros como se tivessem montado uma campanha para esperar o santo. Temos um lago com um peixe gigante em forma de embarcação e uma outra embarcação com um homem preso dentro dele. A viagem pelo mar da virtude será dolorosa para o santo.
No céu temos cisnes gigantes e uma embarcação navegando no ar e por fim, sobre a fumaça que sai da cidade temos peixes gigantes, sobrevoando a cidade. Alguns elementos que Bosch coloca em suas obras de cunho iconográfico possuem uma simbologia, que para os seus contemporâneos deveriam ser transparentes. Para muitos estudiosos seriam provérbios morais em forma de alegorias. Abaixo temos uma relação de significantes e significados relacionados por Copplestone e Dagoberto Markl para serem lidos como meio de expressar a fé. São os seguintes símbolos:
Ratos = mentira                                        
Íbis = diabo                                               
Peixe= pecado
Árvore= sexualidade
Se associarmos cada símbolo, perceberemos que Bosch pinta a difícil decisão do anacoreta que tem que abdicar do mundo material, para conseguir a elevação espiritual, uma dos maiores dramas do homem medieval.

3.3-A Luxúria como inimiga da Fé

Bosch não parecia ter associação com as seitas heréticas como os Adamitas (grupo que defendia a volta do homem ao estado de pureza de Adão por meio do ato sexual), os cátaros ou os Irmãos da Vida Comum. No período em que a Reforma Protestante ganhava força no norte da Europa, a Igreja Católica, principalmente, na Espanha e na Itália, colocava em prática a Inquisição. O ato de matar em nome de Deus como motor das Cruzadas adquiria proporções terríveis.
Muitos consumidores dos trabalhos de Bosch teriam declinado em ter as suas obras, caso ele fosse associado aos heréticos. A perseguição religiosa seria uma mancha na reputação de qualquer cidadão, e principalmente se fosse uma pessoa eminente como um comerciante ou aristocrata. Os Países Baixos, assim como outras regiões da Europa, por mais que conservassem a sua cultura pagã por baixo de um verniz cristão, já estavam com muito dos preceitos da Igreja assimilados em seu modo de vida. Mesmo Martinho Lutero, como atesta William Manchester (2004, p.131-159) não aceitava algumas características liberais que estavam sobressaindo com a Renascença, como o questionamento do geocentrismo e a razão sobre a fé defendida pelos humanistas. Talvez o pior fosse o caso de papas que tinham atitudes de Luxúria com freiras e prostitutas como no caso de Alexandre VI, o papa Bórgia (1431-1503).
Em outra ótica crer no poder do mal e no fim no Juízo não deixava de ser uma aprovação ao pensamento da Igreja: “O príncipe das Trevas, ensinava a Igreja, era tão real quanto a Santa Trindade. Sem dúvida era útil acreditar nele; os prelados eram unânimes ao afirmar que, quando se tratava de manter as massas em um caminho reto e estreito, o medo do diabo era uma força mais poderosa do que o amor a Deus”. (MANCHESTER, 2004, p. 101).
Bosch como bom cristão não enxergara na conduta de monásticos suspeitos de hipocrisia, ou na atitude da população da sua comunidade a liberalidade como algo positivo. A maneira como deprecia o sexo em suas obra vai de encontro ao ensinamento cristão de uma sociedade que deveria ‘crescer e se espalhar sobre a terra’. O ato sexual é somente para a reprodução e a ideia de prazer seria um passo para a danação eterna. Percebe-se então como seria condenado o ato de clérigos tendo filhos e ministrando sacramentos. O papa Bórgia seria o exemplo de como a religião estaria em degradação, o que levaria as obras dos artistas dos Países Baixos, principalmente, Bosch a mostrar padres e freiras monstruosas.
O anacoreta Antão seria não somente um exemplo de admiração, mas ao mesmo tempo um representante autêntico de um cristianismo degradado pela Luxúria de clérigos e uma sociedade que acreditava mais em adivinhos e magos do que nos milagres cristãos. O sexo era realmente, para o medievo, o maior inimigo da fé. Bosch pinta o anacoreta lutando contra a dama da Luxúria que a todo o momento o chama para a sua tenda para fazê-lo esquecer da sua missão de purificação. Le Goff (2008) relata que nestes tempos em que o demônio estava mais próximo do cotidiano do homem, a Igreja regulamentava o que o homem deveria fazer ou não em relação à fornicação e os desejos sexuais:

41. Cometeu adultério com a esposa de outro, você próprio não sendo casado? 40 dias a pão e água, ou seja, vulgarmente falando, uma quaresma e 7 anos de penitência.
42. Se, casado, você cometeu adultério com a mulher de outro, então, pelo fato de que você com a satisfazer seu desejo, duas quaresmas com 14 anos de penitência.
46. Você fornicou com uma freira, quer dizer, a esposa de Cristo? Se o fez: 40 dias a pão e água e 7 anos de penitência; e toda a sua vida terá de passar a pão e água na sexta-feira.
52. Praticou ato sexual com a sua mulher ou com alguma outra por trás, como os cães? Se o fez: 10 dias de penitencia a pão e água. (...) (LE GOFF, 2008, p. 151-152).
O incentivo a orações constantes e as penitências era o remédio contra o mal. Talvez, Bosch se sentisse tocado com as lutas dos santos e por isto, como que imitando Prudêncio e seus vícios e virtudes, retrata a batalha de Antão e até mesmo se retrata próximo dele como no volante direito do triptico. Este desejo de estar próximo de um eremita o destitui do pensamento de que suas obras seriam de cunho mítico e também alquímico, ou de total rompimento com o cristianismo.
Como bem observa Walter Bosing (2006) em seu catálogo sobre Bosch, a visão herética que se pode ter sobre o artista seria fruto de nossa análise contemporânea, que aceita e até compreende o liberalismo, mas não entende a visão medieval que para a nossa sociedade é ultrapassada em relação ao sexo. O que não era comum no mundo do pintor. Em tempos de estudo do subconsciente de Sigmund Freud (1856-1939) e as análises estéticas de André Breton (1896-1966) e os surrealistas que na ânsia de legitimar o seu movimento, colocaram Bosch como um precursor.
A idéia de ‘New Age que as obras de Bosch poderiam transparecer não são mais que o modo de tatear a leitura de seu trabalho como bem expressa Wolfgang Kayser em Grotesco (1986) ao esmiuçar a Jardim das Delicias (fig 06). Parece ser imperativo encaixar o pintor em algum movimento artístico ou em um comportamento contemporâneo para poder compreendê-lo?
Pode ser que este foi o modo que muitos biógrafos e estudiosos de arte chegaram para compreender a sua mensagem, e por outro lado, assim como existiram ainda ruídos que não puderam ser decifrados, estes mesmos ruídos levam a fragilidade, analises que tentam conectar Bosch ao Surrealismo ou a contemporânea New Age. De toda forma alguns vestígios da Idade Média ainda se encontram nas sociedades ocidentais: o belicismo, o contratualismo, a hierofania. Estes elementos da cristandade amalgamaram no inconsciente coletivo. No fundo o mundo contemporâneo entende muito bem a mensagem boschiniana, já que o artista esperava que sua obra fosse compreendida pelos cristão da maneira mais objetiva possível por serem de cunho morais. Se suas mensagens fossem opacas não haveria a sensibilização em torno do drama dos santos e estes não seriam vistos como exemplo de conduta para serem seguidos pelos inseguros homens do medievo. Enfim, a obra de Bosch é feita para ser entendida não como um enigma mas, uma alegoria da qual se retira uma lição: seguir a Deus e negar o mal dentro do coração.

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