1.4- Poder estabelecido
Parece complicado entender como a Igreja se tornou poderosa ideologicamente, quando vemos as guerras dos Macabeus e a perseguição romana a Baco. A Igreja herdou estes fatos e os levou a adiante. A Europa dividida entre a cultura românica e a germânica era invadida por hunos e bárbaros orientais. Quando o Cristianismo se ascendeu com a decadência do Império Romano, seus representantes passaram a defender a unificação do continente europeu através do rei franco Carlos Magno. Como instituição que tinha reis convertidos na suas fileiras de fieis, e assim podia justificar como única religião representante de Deus na Terra, a Igreja literalmente abraçou a unificação do território europeu. O continente europeu estava dividido entre os antigos descendentes de um Império Romano decadente e as tribos germânicas. Ambos eram atacados pelos hunos e outros bárbaros orientais. Mesmo com várias tribos vivendo com dialetos próprios e variáveis culturais o cristianismo investiu em uma unificação, por vezes forçada e com intuito ideológicos de dominação que levou a uma efêmera coalizão entre o mundo dito clerical (o mundo dominado e justificado pela Igreja) e o mundo laico (o mundo dos povos germânicos divididos em tribos como os saxões e os celtas) com a chancela de Carlos Magno como atesta Franco Júnior:
Foi então que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade política com Carlos Magno, mas sem se interromper as fortes e profundas tendências centrifugas que levariam posteriormente à fragmentação feudal. Contudo, para se alcançar essa efêmera unidade, a dinastia carolíngia precisou ser legitimada pela Igreja, que além do seu poder sagrado se via como única e verdadeira herdeira do Império Romano. Em contrapartida, os soberanos carolíngios entregaram um vasto bloco territorial italiano à Igreja, que então se corporificava e ganhava condições de se tornar uma potência política atuante.(JUNIOR, 1986, p. 13).
Com o tempo como já foi relatado, a Igreja para poder se impor ideologicamente demonizou as crenças das tribos convertidas germânicas. Para isto, construiu templos católicos em locais sagrados pertencente à sociedade laica e convertia deuses em demônios e transformava outros em santos cristãos. Os laicos (a sociedade cristianizada, mas que não tinha contato com a filosofia e nem com o intelectualismo greco-romano) divinizavam os elementos naturais e via o contruatualismo como uma relação íntima e direta com o sobrenatural sem precisar de intermédio de mestre espiritual. Ironicamente com medo de perder fieis a Igreja permitiria o contratualismo entre o crente e o santo de devoção, uma substituição aos antigos rituais pagãos de sacrifício de animais ou invocação de forças.
O camponês humilde longe das cidades ainda temia a natureza e a escuridão, cabia a Igreja alertá-lo dos demônios e quimeras, que o próprio camponês carregava desde suas crenças ancestrais. Isto era o imaginário popular, um conjunto de imagens construídas pela sociedade. O imaginário com a junção da mentalidade que Le Goff definiria como uma unidade individual que transitava para o coletivo. Aquilo que todos os indivíduos de um grupo tinham em comum e que se manifestava mesmo que inconscientemente. O imaginário e a mentalidade (ideia e instrumentos culturais que os legitimam) gerariam todas as imagens que aparecem nas gárgulas das catedrais, na crença em lobisomens e vampiros e claro, em demônios que apossavam da alma dos que não seguiam os dogmas da Igreja.
Esta junção da visão da Igreja a crenças que lhe seriam dispares surgiu lentamente, ainda quando cristãos ganhavam notoriedade em Roma e assim ‘engoliram’ a arte clássica pagã, como percebe Panofsky em seu ‘Significado das Artes Visuais: “(...) a figura de Orfeu foi empregada para representar Davi ou quando o tipo de Hércules puxando Cérbero para fora do Hades foi usado para retratar Cristo tirando Adão do Limbo”.(PANOFSKY, p. 68, 2004). Logicamente, que existe os fatores composicionais e de texto para se entender este entremeio do clássico e o não-clássico. Os monges copistas dono do saber mitológico greco-romano tinham acesso à palavra, já que o monge que deveria confeccionar a imagem tinha o texto como referência e torná-lo contemporâneo para os seus. Para isto, traduziam em imagens textos que não eram descritivos. Assim sendo um personagem greco-romano poderia receber uma roupagem medieval. Pois, o conteúdo da mensagem era mais importante do que a sua forma. Os monges artistas usavam as obras romanas (formelas e esculturas) como base composicional procurando não exaltar os detalhes do corpo (a alma era o bem precioso e o corpo era corrupto). Por isto, a estilização das figuras e o pouco cuidado no retrato se desligando do naturalismo da arte grega e romana.
CAPITULO II
DANTE E BOSCH
2.1-Representantes do belicismo
No Paraíso da sua Divina Comedia, Dante Alighieri (1265-1321) explanou sobre o geocentrismo defendido por Tomás de Aquino, usando a sua musa Beatriz como símbolo da fé e do conhecimento teológico. No Paraíso todo o conhecimento astronômico da Idade Média se mescla à filosofia teológica e assim procura explicar elementos tidos como não humanos como os níveis de planeta e sua relação com as moradas celestiais: “Na oitava esfera luzem muitos lumes, os quais se distinguem entre si pelo seu vulto e pela qualidade da luz que emitem. Se a tenuidade ou a densidade deste corpo desse causa às sombras e às luzes, decerto todas teriam virtudes iguais similares e todas seriam iguais”.(DANTE, canto II, p. 236).
Neste mesmo canto, Dante além demonstrar por meio das explicações de Beatriz, sobre como o Paraíso tem existência, demonstra também que nenhum conhecimento humano poderia alcançar o saber divino e toda a explicação do homem para entender o mundo seria sinal de ignorância sobre este saber. Um tipo de conhecimento que platonicamente falando seria somente de alcance dos sábios que podem desafiar sair da caverna ou na teologia cristã de Tomás e Dante, ir além do mundo matérico.
Ainda na Divina Comedia no canto XVI no poema sobre o purgatório dos pecadores da ira, Dante discute o livre-arbítrio e resume todo o pensamento tomista sobre Deus como motor do universo e percebe que tudo gira em torno do divino:
Vós, os viventes, costumais atribuir ao Céu as causas de todos os efeitos, ligando, por necessária dependência que a todo o mundo rege, o bem e o mal. Se assim realmente acontecesse, destruído o livre-arbítrio, não receberia o homem o prêmio justo e o castigo merecido. De fato, os vossos movimentos são iniciados com a permissão divina. Não digo todos; mas admitindo que assim ocorra com todos; ainda tendes a luz da razão que vos permite discernir entre o bem e o mal. (DANTE, canto XVI, p. 168).
O livre-arbítrio discutido na obra de Dante ganha dimensões gigantes nas pinturas do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Artista dos Países Baixo, Bosch tinha uma visão totalmente negativa e por que não dizer não tomista. Pois, se Tomás de Aquino considera que o homem ainda tem uma escolha mesmo que Deus ainda seja o impulsionador das ações humanas. Bosch percebe que toda a ação do homem é contraditória a Deus. Em obras como a Carroça de Feno (provavelmente séc. XVI) e Távola dos Sete Pecados (c.1490) (figura 01), Bosch expressa em pinceladas um Deus que está distante do homem enquanto este se entrega voluntariamente ao pecado, deixando o motor divino que guia para trás. O homem é responsável pelas suas escolhas e a ação de Deus é punitiva. Tanto que as pinturas finais dos seus tripticos sempre terminam com o castigo humano no Inferno.
No canto que encerra sua viagem pelo Purgatório, Dante descreve alegoricamente a Igreja como representante de Deus na Terra. De certa forma ele parafraseia o profeta Ezequiel, que em sua visão vê o carro divino protegido por seus querubins. Dante coloca o carro divino de Ezequiel como a própria Igreja que é guiada por Cristo (metaforicamente no poema um grifo) e junto destes seguida pela comitiva de apóstolos e anciãos sábios da Bíblia. Contudo, o carro de Deus no poema de Dante é perseguido e atacado por uma águia e uma raposa enquanto uma meretriz ao longe se enamora com um gigante.
Como se trata de elementos alegóricos, a raposa a meretriz o gigante e a águia, significam os flagelos da Igreja: a águia as perseguições, a raposa a heresia, a meretriz, a cúria romana que deseja poder e o gigante seria o Rei Felipe o Belo, que para Dante representaria a França, inimiga da igreja italiana.
Se o Canto XXXII de Dante percebe as contradições e fragilidades da Igreja: “Ereta, qual rocha saliente em alto monte, sentada sobre o carro vi então nua meretriz, os lascivos girando à volta. Como pretendente tê-la para si unicamente, à sua retaguarda postava-se um gigante, e os seguidamente se beijavam”.(DANTE, Canto XXXII, p.222), a historia registra que concretamente os seus desatinos, como bem atesta Jacques Le Goff (2008) ao afirmar que a Cruzada é mais que uma guerra santa, na qual a justificativa da guerra é feita em prol de um bem maior, mas que a guerra deflagrada pela Igreja é uma guerra declarada por Deus contra os que não o seguem segundo o ponto de vista dos cristãos fervorosos da época.(continua)
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