Além de a história ter como características a forma da tragédia grega, também tem um cunho de nacionalismo, usando a mitologia para justificá-lo. Dante se transforma em Enéas, não somente por sentir uma ligação inspiradora na obra de Virgilio, mas também por ser um nacionalista. Sua obra transpira sua paixão e frustração sobre a sua cidade Florença que o expulsou, sendo assim se sente um ‘sem pátria’ assim como o troiano Enéas. Ao mesmo tempo tenta resgatar os ideais que fundaram a Itália. Os ideais de uma nação mítica fundada por um herói grego.
No momento em que Dante convoca Virgilio para guiá-lo assim como a Sibila guiou Enéas no inferno, o poeta florentino está legitimando sua obra e colocando-a no patamar das grandes obras gregas dos poetas que lhe influenciaram como Homero. O inferno dantesco tem as características dos infernos que apareceriam em trabalhos artísticos de pintores como Bosch: uma fusão de visões aterradoras laicas e judaico-cristãs.
No mesmo inferno em que se encontra as fúrias, os centauros, Cérbero, Plutão, Minotauro, Titãs, o monstruoso Gerião e ciclopes está também o anjo caído Lúcifer e sua legião de demônios bíblicos. Logicamente Bosch não pinta os monstros gregos, mas não esconde os elementos laicos que estão na sua obra - os Provérbios Holandeses - bem como uma visão particularizada de fé.
Realizando outra analogia da Divina Comedia com a Eneida, podemos extrair uma citação da obra de Virgilio traduzida pelo historiador e escritor Thomas Bulfinch em seu livro O Livro de Ouro da Mitologia (2006): “Enéas avistou um lado das muralhas de uma poderosa cidade, em torno da qual fluem as águas furiosas do Flagetonte. Diante deles estava a Porta Diamantina, que nem os deuses nem os homens podiam atravessar. Junto à porta erguia-se uma torre de ferro, na qual Tisifone, a fúria vingativa, mantinha-se em guarda. Da cidade vinham os gemidos e o ranger de dentes (...)” (BULFINCH, p. 344, 2006).Cena quase semelhante é relatada por Dante em sua obra, no Canto IX de sua ‘Divina Comédia:
“Outras palavras disse ainda das quais não me recordo, pois fixara os olhos no cimo da chamejante torre onde surgiram, com horripilante aspecto, três Fúrias, tintas de sangue, feminis nos membros e nos gestos, de verdes hidras cingidas, e por cabeleira ostentando serpentes e cerastas enrodilhadas na fronte” (DANTE, CANTO IX, p. 42).
Poderia relatar outros pontos semelhantes nas obras como o Campo Elíseos que aparecem com seus personagens e a presença da cidade infernal Dite. O que importa é a ideia de expandir a obra de Virgilio, como bem atestou Hilário Franco Júnior, Dante pretendia que sua obra fosse para as massas e rompesse assim o poder hegemônico do latim como um idioma universalizante como pensara a Igreja em ter uma nação cristã unitária e esquecendo dos diversos dialetos que cada região da Europa possuía. De certo Dante fundamentou a pedra da valorização do dialeto toscano que desembocaria no italiano e mais tarde junto com o alemão e o inglês derrubariam o latim.
De toda forma a divulgação da Divina Comedia traria as obras dos grandes poetas épicos à tona e assim como ocorreu com Dante traria muita influência nos escritores futuros, como bem atesta Thomas Bulfinch ao perceber que o tema do inferno já fora esmiuçado por Milton em seu Paraíso Perdido.
A influência da Divina Comédia como obra maior do Ocidente moderno nos faz verificar pontos importantes de acordo com o professor de literatura Andréa Lombardi em seu artigo Um Corpo que Cai (LOMBARDI, p. 19). A obra de Dante expressa arquétipos úteis para compreender a cultura contemporânea: existe a redenção, o castigo diante das ações, o humanismo e a valorização do trágico grego com a fé judaico-cristã. Podemos perceber o eco de Dante na contemporaneidade na ‘literatura de testemunho’, onde o autor se coloca como o eu da história sem interlocutor.
A homenagem à cultura grega não seria totalmente um resgate saudosista como se Dante, quisesse voltar ao passado. Quando ele encontra Homero o escritor da Ilíada no Limbo, está não somente colocando-se entre os grandes clássicos, mas, antes de tudo superando-os. Por isto, a cena do Limbo não é somente simbólica sobre o Inferno, porém, uma separação entre o passado e o presente, onde Dante deixa os seus inspiradores para trás.
Se Dante percebe que pode seguir além deixando suas influências para a posteridade, um sinal do individualismo, ele acaba com esta atitude representando todo os humanistas. De acordo com o Historiador Guilhermo Giucci em Viajantes do Maravilhoso: O novo mundo (1992, p.14), o poeta florentino parece espelhar o sonho do homem do novo tempo que não mais se convence ou que se basta com o mundo que lhe é apresentado. Se Dante navegou no lago Aqueronte e descobriu lugares exóticos, o mesmo ocorre com os navegadores como Fernão de Magalhães e outros que iam procurar um lugar além mar.
O mirabilia (o maravilhoso) onde o europeu deposita uma visão mágica está nas terras desconhecidas além dos limites da Europa. Antes de Dante já havia histórias e lendas de viagens para outros mundos, alguns iam de barco como Dante fez guiado por Virgilio, outros iam a cavalo. Lendas onde um viajante encontrava um ‘paraíso perdido’ cheio de riquezas e rios de leite e mel. Giucci relata do mito de São Brandão (1992, p. 36-37), monge argonauta que teria encontrado um mundo além mar com as características citadas acima, onde o barco era Deus e o monge o seu fiel que seguia seus preceitos e que por isto, como recompensa chegava ao Paraíso. Na verdade a lenda de São Brandão era uma fábula uma paidéia (educação) para catequizar os fiéis.
Provavelmente Dante devia conhecer esta história para redigir o seu Purgatório, uma ilha acima do mar que serviria de elo entre a terra e o paraíso celeste. Havia também uma versão educacional sobre a viagem de Ulisses e sua intrépida aventura narrada por Homero. Dante o coloca no Inferno, com se fosse um castigo para muitos religiosos da época. A imagem de Ulisses suscitava desobediência, e assim a aventura do grego argonauta em vez de simbolizar um herói que cruzou os mares da vida, era convertido em um desafortunado que fugiu à lei divina. É totalmente complexo e contraditório, ver Dante exaltar a cultura grega e ao mesmo tempo vê-la como um oposto negativo a sua fé. Mas, não podemos esquecer que ele vivia a crise de um tempo que findava enquanto outro iniciava uma transição dolorosa para os homens do medievo, pelo menos em termos existenciais.
2.3- O Inferno dantesco
Se existe obra onde a imaginação parece ser atiçada, é a Divina Comédia de Dante. A sua divisão entre Inferno, Purgatório e Paraíso; e como descrevia cada passagem faz qualquer leitor ver as criaturas e lugares mais fantásticos. Segundo a professora Aurora Bernardini em seu artigo Divina Viagem (BERNARDINI, p.46-51) instiga o leitor em três vias: a do olho, a do pensamento e a da memória. Com o olho vemos com descrição minuciosa cada lugar do Inferno desde o rio Aqueronte até a cidade de Dite, das escadarias do Purgatório até a Rosa Mística no Paraíso. Tudo é descritivo e literalmente traz sensações que vão além do visual. O pensamento nos leva a questões teológicas, filosóficas e a memória a evocações do passado (os expoentes gregos), o presente (os fatos de época narrados como uma crônica) e o futuro (a esperança do homem do medievo no fim da vida e ir para o Céu).
O olho será o ponto de discussão aqui. Pois, inúmeros artistas tentaram levar o que Dante escrevia em imagens, artistas como Sandro Butticelli (1445-1510) (fig. 03), Francisco de Goya (1746-1828), William Blake (1757-1827), Eugene Delacroix (1798-1863) e Gustave Doré (1832-1883) (fig. 02). Estes artistas desenvolveram obras de muito valor sobre o poeta florentino. Destes, o destaque de análise será Botticelli. Esta escolha tem dois motivos: Botticelli era renascentista e como humanista posterior de Dante. É interessante saber que os renascentistas cultuaram a Divina Comédia o que resultou em trabalhos que se amalgamaram a obra.
Voltando a obra de Dante, a necessidade de ter ciência que seu trabalho por ter sido escrito em toscano e por tocar em assuntos teológicos, A Divina Comédia chegou a ser rejeitada pela Igreja. Posteriormente Dante pediria desculpas a cúria romana por ter feito a obra. De certa forma é irônico saber que a obra acabava fazendo uma propaganda do catolicismo, divulgando o belicismo que a Igreja tanto exaltava na comunidade. Tanto é verdade que as ilustrações do Inferno eram muito conhecidas. Monges de diversos monastérios copiavam e divulgavam a Comédia (que seria divina mais tarde) quase com o mesmo valor religioso da Bíblia. Muitos burgueses tinham exemplares em suas casas da obra de Dante o que levou o poeta a ser o mais popular em seu período.
Por estes fatores, pode-se supor porque as ilustrações do Inferno foram mais divulgadas que as do Purgatório ou do Paraíso. Há muitas ilustrações desta parte da obra. Escrita durante a Quaresma, Dante cria uma viagem que como foi mostrado era inspirada na Eneida de Virgilio. Por isto, os monstros mitológicos presentes no Inferno, na verdade não é o Inferno de ranger de dentes bíblico e sim o Hades. Como também foi comentada a imagem do Diabo, não é determinada nas escrituras, mas uma junção de imagens de criaturas do mundo laico como relata Luther Link:
‘Lúcifer já foi belo hoje é feio’ lembrou Dante a seus leitores, mas somente a feiúra e maldade de Satã estiveram na mente dos crentes, pensadores, escritores e artistas durante mais de mil anos. Até mesmo Botticelli, amante da beleza, desenhou uma fera repulsiva para Lúcifer de Dante. É verdade que o fez para ser condizente com o texto de Dante, mas ainda assim quase todas as pinturas e manuscritos iluminados da Idade Média e Renascença mostram um Satã hediondo. (LINK, 1997, p. 32).
De acordo com a historiadora de arte Paula Vermeersch em seu artigo A Selva da Visualidade (VERMEERSCH, p. 76-83) o pintor florentino sob encomenda dos Médici iniciou uma trabalhosa tradução em imagens do Inferno e assim como Dante, Botticelli também é florentino, sente as guerras internas na cidade e a crise do humanismo o que lhe faz identificar com as obras do poeta.
Sandro Botticelli ou Alessandro di Mariano di Vanni Fillipeli (seu nome de batismo real, já que o Botticelli herdou de um irmão mais velho) estudou com Fra Filippo Lippi (1401-1469) aos 17 anos. Trabalhou temas religiosos para o papa Sixto IV (1414-1484) e teria maior visibilidade ao realizar trabalhos de cunho mitológicos para os Médici. Dentre estes trabalhos o Nascimento de Vênus para Lorenzo di Pierfrancesco, primo de Lorenzo o Magnífico. Devido à liberdade de expressão artística que tinha com os Médici, pôde trabalhar os temas mitológicos gregos que eram conhecidos mais em literatura do que em imagens para os pré-renascentistas.
Simpatizante das ideias reformadoras religiosas do frade dominicano Savonarola (1452-1490) se tornou um crítico da Igreja, o que pode ter lhe aproximado dos trabalhos de Dante. Segundo H. W. Janson (1986, p. 201-202) os trabalhos de Botticelli se aproximam do que seria mais tarde o Maneirismo, com as suas mulheres esguias e leves. Outro ponto seria a despreocupação com o fundo em relação às figuras do primeiro plano como ocorreu na Vênus, o que seria também um resquício de influência da arte medieval pouco dada a detalhes anatômicos e sim na força da cor e no didatismo. Mas isto transparece em seu trabalho na Comedia?
Como renascentista percebe-se a preocupação com a anatomia humana nos corpos retratados, cada movimento de cada personagem, são poses pensadas e lembram o estatuário grego. O poeta e mentor Virgilio ganhou um ar de rei com roupas azuis e uma coroa de monarca. Em oposto a idealização de Virgilio, o Dante de Botticelli não é diferente dos que já apareceram em outras ilustrações de diversos artistas. Botticelli tem uma visão muito particular da forma humana, tanto que sua Vênus esguia de sua obra mais conhecida é símbolo visual da Renascença. Um outro ponto importante é como Botticelli narra cenas. Parece gostar mais das que ele pode expor muitos modelos em posições diferentes. Uma inovação talvez, seja em mostrar em seqüência os personagens de Virgilio e Dante assistindo e comentando o que veem no Inferno como bem mostra a ilustração. Os demônios de Dante são híbridos tipicamente laicos: um monstro com patas de cão, asas de morcego, rosto de dragão e seios de mulher. Botticelli chegou a desenhar vários esboços e muitos viraram iluminuras, o que denota uma dedicação ao tema.
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