quinta-feira, 21 de maio de 2015
Sessão Contos Bizarros
Do Outro Lado
Ana Lúcia levantou esbaforida da cama e
percebeu que estava atrasada para o trabalho. Logo hoje quando apresentaria
para os acionistas da empresa que atua um novo projeto na venda de um produto
de grande escala.
Formada em publicidade desde 2003, Ana Lúcia
foi o que podemos chamar de uma garota batalhadora. Filha de uma empregada
doméstica e sem um homem para chamar de pai, viveu a vida toda lutando por um
lugar ao sol.
Enquanto outras garotas pensavam em ídolos da
TV e em namoro, Ana Lúcia queria mesmo era estudar e dar uma vida de conforto
que sua mãe nunca teve. Passava horas estudando e também dividindo o tempo em
ser balconista de uma perfumaria do shopping.
Enquanto atendia os fregueses sonhava em ter
um negócio próprio, ser a sua própria patroa, como costumava dizer aos colegas
de serviço. Como gostava de revistas de moda pensou em ser designer, depois viu
que gostava mesmo era de outro ramo: publicidade.
Depois de passar no vestibular depois de
muito ‘ralar’ noite à dentro com pilhas de livros, conseguiu a tão sonhada vaga
em uma das melhores instituições do ramo. Sempre pensando em algo a mais fez
outros cursos e procurou estágios que pudessem engrandecer o seu currículo.
Nesta luta toda acabou trabalhando em importantes empresas até chegar à chance
de ter um cargo de chefia em uma das maiores empresas do setor publicitário.
Agora estava ela em seu terninho importado e
com um carro de ultimo tipo correndo apressada pelas congestionadas estradas do
Rio de Janeiro. Antes de partir deu um beijo no marido, também publicitário, e
nas crianças. Claro que não podia esquecer da mãe, mulher de fibra e que esteve
sempre ao seu lado. Deu um beijo em sua testa e acariciou as suas mãos
envelhecidas e marcadas pelo trabalho braçal.
Por um momento antes de partir deu um olhar
de sentimento de paixão pela família e pela bela casa que tinha. Acariciou os
moveis e depois pegou apressadamente seu notebook
e sua maleta de projetos e foi em grande carreira para o seu carro. O
transito parecia mais selvagem que de costume: motoristas e motociclistas
disputavam espaços com ônibus e caminhões de grande porte. O barulho de buzinas
era tão irritante quanto de sinais que apareciam de forma sistemática pelos
trajetos.
Enquanto dirigia Ana Lúcia percebeu que seu
celular tocava constantemente. A sua concentração no volante a impedia de atender
ao telefone. Como em toda cidade de grande trafego a moça acabou pegando um
congestionamento. Aproveitou a parada forçada e resolveu pegar o celular e ver
a ligação. Para a sua surpresa era uma das secretárias da empresa que estava
chamando.
A secretária disse que a reunião ocorreria
com atraso, pois, muitos dos acionistas não haviam chegado à empresa. Ana Lúcia
soltou um suspiro de alívio e também de desapontamento, se desesperou á toa.
Aliviada resolveu relaxar e ouvir uma música
enquanto o congestionamento prosseguia. De repente um alvoroço se fez. Um
motoqueiro via em alta velocidade e pelo jeito não conseguia controlar o seu
veiculo. Ana Lúcia nem conseguiu esboçar uma reação quando o motoqueiro foi
projetado para o pára-brisa de seu carro ao bater a moto na lateral.
O corpo do motoqueiro atravessou o vidro e
acertou em cheio Ana Lúcia que não teve como se esquivar. Depois do golpe a
moça perdeu os sentidos. Ela via tudo branco. Depois tudo ficou escuro e um
enorme silencio surgiu. Ana Lúcia começou a ver cores que se digladiavam diante
de seus olhos. Um arco-íris deformado que logo foi ganhando a forma do rosto de
seus filhos e de seu marido que a olhavam com os olhos cheios de lágrimas.
A sua filha dizia emocionada:
-Mamãe você vai ficar bem!
Ana Lúcia também emocionada respondia para a
filha:
-Eu estou melhor agora minha filha.
A criança continuava a chorar e pelo jeito
não havia escutado o que a mãe teria dito. Ana Lúcia então falou novamente que
estava bem. Mas os filhos pareciam não escutar.
Ana Lúcia então tentou levantar da cama,
contudo o seu corpo parecia não obedecer. Tentou então esticar as mãos para
tocar os filhos. Sua mão levantava, mas não conseguia tocar as crianças. Quanto
mais se esforçava mais parecia que seus filhos estavam longe do seu alcance.
Começou a gritar pelo nome do marido e
depois de ver que este não ouvia, começou a gritar por um médico:
-Doutor, por favor, me ajude! O que está
havendo comigo?
De repente Ana Lúcia sentiu uma leveza
reconfortante. E Percebeu que já não estava na cama. Não entendera como de uma
hora para outra estava de pé no canto do quarto do hospital. Viu que estava
perto dos filhos e do marido e tentou um contato com eles. Caminhou até a eles
e quando esticou a sua mão para tocá-los percebeu que não conseguia.
Do nada começou a ouvir vozes e o quarto
começou a brilhar. A luz cegante tomava conta do recinto e Ana Lúcia começou a
sentir um calor estranho. As vozes entoavam um cântico suave e ao mesmo tempo
aconchegante. Ana Lúcia se deixou levar pelo canto e então fechou os olhos.
Um estranho silencio tomou conta novamente
da moça. Sem perceber Ana Lúcia começou a levitar e percebeu que agora não estava
mais no quarto ou em meio à luz. Um mundo avermelhado se fez diante de seus
olhos. E no meio do intenso vermelho figuras negras de olhos amarelos começaram
a aparecer.
Ana Lúcia sentiu um calafrio. Seu corpo
ficou paralisado e na mesma hora uma das estranhas figuras tocou o seu braço. Outro
ser pegou em seu pescoço e logo a garota percebeu que os monstros queriam
levá-la para algum lugar.
Enquanto lutava Ana Lúcia gritava pelo seu
marido para que este viesse a ajudar. Contudo, seu marido não aparecia. Os
monstros com sua força puxavam a moça e tentavam levá-la para um portal com
colunas gregas cinzentas e adornados com gárgulas. O desespero tomou conta de
Ana Lúcia que lutava para se soltar dos monstros, mas não tinha forças para
tanto.
Quanto mais lutava a moça, mais os monstros
demonstravam maior força. Ana Lúcia começou a lembrar dos filhos, da mãe e do
marido, vertia lagrimas em pânico. Chorando e soluçando ela perguntava por que
Deus havia abandonado naquela situação. Um dos monstros disse a ela que Deus
não poderia intervir. Que ela estava condenada ao fogo do Inferno.
Ana Lúcia não entendia porque teria que ir
para o Inferno. Nunca fez mal a ninguém pelo que saiba e nem deixou de ajudar
alguém. Sempre amou a sua mãe e seus filhos. Tentou ser uma boa esposa e
respeitou o marido. Por que tal injustiça lhe era aplicada?
Quando pensou em desistir de lutar e se
entregar aos demônios, Ana Lúcia então sentiu um vento levar o seu corpo para
longe dos monstros. Como se fosse à mão de Deus que transportava uma pena, a
moça se viu levitar novamente e indo parar em meio uma luz. Quanto mais à
luminosidade aumentava mais Ana Lúcia sentia-se calma e pensava que nunca
estivera tão bem em sua vida.
Passado alguns minutos Ana Lúcia foi
transportada para outro lugar. Olhou para os lados e viu que estava em algum
lugar florido. O perfume da primavera chegava refrescante as suas narinas.
Enormes e frondosas arvores tomavam conta do local. Um pouco mais ao longe ela
avistou um pequeno número de pessoas vestidas de preto.
Era um velório que estava ocorrendo e Ana
Lúcia percebeu que o lugar era na verdade conhecido. Tratava-se do cemitério
metropolitano. Ana já estivera neste lugar antes para o sepultamento de um
amigo. Pelo jeito estava havendo outro e ela foi para ver de quem era.
Olhou para ver se tinha pessoas conhecidas e
encontrou a sua mãe e também seus filhos e seu marido. Também estavam seus
companheiros de trabalho e alguns dos acionistas que ela queria ver na bendita
reunião. Pensava consigo quem estaria sendo sepultado ali. Ana Lúcia esperou o
caixão baixar na cova para em seguida ver quem era o defunto.
Após o fim da cerimônia todos os
participantes foram indo embora lentamente, menos os filhos e o marido de Ana
Lúcia. Estranhando a situação Ana foi tentar se aproximar da lápide para ler o
epitáfio. Para seu espanto ela viu que o nome na lápide era o seu. O calafrio
voltou e a moça colocando a mão no peito sentiu que aquilo que mais temia
estava realmente acontecendo...
Ana Lúcia não escapou da implacável mão da
Morte!
Após 4 anos de coma finalmente Ana Lúcia
emitiu sinais de vida e pode ter alta do hospital. Ela relatou todas essas
experiências surreais depois do acidente. Para os psicanalistas e estudiosos da
neurologia os sonhos e imagens de coma podem ser um processo do cérebro em
tenta lidar com as memórias acumuladas. Todavia, para a maior parte das pessoas
os sonhos na verdade seriam mensagens ou viagens através de um mundo além.
Talvez Ana Lúcia jamais consiga ter certeza se realmente esteve em seu próprio
funeral ou contatou demônios que queriam sua alma. A crença de cada um fala por
si mesmo!
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