A teologia está explicita na obra de Dante Alighieri. Os maiores teólogos da Igreja foram Santo Agostinho (354-430), Alberto Magno (1200-1280) e Tomás de Aquino (1225-1274). Em 1240 Alberto Magno começou a ensinar em Paris divulgando a filosofia aristotélica que mais tarde apareceu nas obras de Tomás de Aquino, já que este mais tarde estudou em Paris. “Ordenar é o oficio do sábio” frase proferida pelo filosofo grego seria o seu lema para organizar a hierarquia angelical e a divisão do Inferno e do Paraíso. No fim, Tomás de Aquino mesclou em seus tratados filosóficos elementos de Alberto Magno e Santo Agostinho.
Agostinho era um defensor ferrenho da fé sobre a razão. Sua obra A Cidade de Deus era impregnada do pensamento platônico, na qual o mundo terreno era uma representação imperfeita do Paraíso. Por isto, ele acreditava haver duas cidades: a cidade terrena (pecaminosa) e a cidade de Deus (o Paraíso simbolizado pela Jerusalém Celeste). A esta idéia de dois mundos concretos e divisórios o poeta Dante descreveria na Comédia. Tomás de Aquino estudou além dos filósofos gregos o matemático Ptolomeu (ac. 85-dc. 165). Vale citar que Ptolomeu era categorizado como autor profano pela Igreja. Porém, sua matemática serviu como epstema para sustentar o pensamento geocêntrico (a Terra como centro do sistema solar).
Como demonstra a influência de Tomás de Aquino em sua obra Dante em sua poesia se ocupa com as hierarquias angelicais (tronos, querubins, serafins e arcanjos) e as ordens de divisão no Inferno e no Paraíso ligados a tipos variados de pecados (os sete pecados capitais: Luxúria, Inveja, Ira, Avareza, Preguiça, Gula e Vaidade). Na Comédia de Dante todas estas ordenações aparecem demonstrando sua simpatia pela teologia de Agostinho e Tomás de Aquino.
Um ponto importante que irá caracterizar o cristianismo medieval e que ficará transparente em obras de arte do século XIV e XVI e que inicia com as Cruzadas é a identificação dos fieis da Igreja com um Cristo sofredor na cruz, como relata Le Goff: “(...) a religiosidade evoluiu a tal ponto que dessa época em diante passa ao primeiro plano a representação do Cristo sofredor: o século XIII é o século da Paixão”.(LE GOFF, 2008, p. 100) já não bastava o servo trabalhar para o senhor feudal e associar sua lida na lavoura a uma purgação para poder purificar o espírito e assim ir para o céu: “O trabalho, para o homem medieval, não tem realmente valor material: é ingrato, pesa sobre o corpo. Em compensação, apresenta uma face espiritual, inventiva (...)” (APUD, 2008, p. 77).
Para que a vida não se torne um eterno sofrer na Terra o Purgatório se tornou o lugar ideal para que o homem cristão medieval e vacilante pudesse ter uma chance as muitas moradas no Paraíso. Tanto Santo Agostinho, Cesário de Heisterbach como Tomás de Aquino, os doutores da Igreja, legitimaram um lugar entre o Inferno e o Paraíso, onde o homem possa expurgar seus erros entre os sete pecados estabelecidos nos dogmas católicos.
Esta preocupação do homem com a morte, a partir da legitimação do Purgatório se estende com temor ao desconhecido e um apego somente à teologia e crenças adversas. Estas crenças ganharam força com as derrotas nas Cruzadas em tomar Jerusalém e principalmente com a Peste Negra que dizimara grande parte da população nas cidades da Europa. O jornalista francês Jean-Luc Majouret no artigo A morte obsessão onipresente’(2008), percebe que as invasões bárbaras e as guerras santas fizeram o homem medieval ter uma percepção de vida após morte negativa com visões aterradoras com bestas e seres demoníacos:
A cristandade se converteu numa fortaleza sitiada - na realidade, pelos turcos e pelos tártaros; na fantasia pelas forças do Mal. Nesses anos, em Toscana, Tadeo di Bartolo pintou os afrescos da igreja de San Giminiano, colocando no centro do Inferno um Lúcifer gigantesco, com cabeça de ogro chifrudo e mãos poderosas a dilacerar os condenados. A seu redor, os demônios estripavam os invejosos, faziam os avarentos vomitar, impediam os gulosos de comer os pratos de uma mesa copiosamente servida, açoitavam os adúlteros enfiavam estacas acesas no sexo das levianas. As visões de Hieronymus Bosch não tardariam.(MAJOURET, 2008, p. 55-56).
O homem da Idade Média vivia pelos preceitos ditados pela Igreja. Toda a sua fé gira em torno de dogmas que às vezes esbarram em contradições. Logicamente que estas contradições não surgiram na própria Idade Média, mas antes mesmo da formação da sociedade européia. A própria formação greco-romana, cheia de amálgamas culturais e que depois foram adotados pelo homem europeu.
1.3-Demônios e diabos
O que seria do belicismo se não houvesse Deus e o Diabo? Não existiria. O homem do medievo transitava em meio à batalha titânica entre duas forças superiores. Para compreendermos como isto se manifestava voltemos aos princípios de base da mentalidade medieval: a hierofania, o belicismo, o simbolismo e o contratualismo.
A visão sobrenatural da natureza e a sua linguagem de leitura desta pelo homem medieval seria a hierofania e o simbolismo, na qual o homem divinizava e interpretava fenômenos naturais dando-lhes um ar místico. A posição humana diante do bem e do mal e como o homem lida com estas forças através de pactos são o belicismo e o contratualismo.
O temor e a hierofania de certa forma fortalecem o belicismo. Para o homem medieval a crise da colheita em épocas desfavoráveis, a peste e a escuridão da noite sem luz artificial para iluminar eram os esconderijos perfeitos para criaturas estranhas: os demônios. O Diabo seria uma mistura dos elementos bíblicos com mitos pagãos que a Igreja precisou anexar para poder se expandir na Europa. Elementos da Grécia foram convertidos ou sofridos releituras por teólogos. O próprio conceito de demônio que para os gregos significava o espírito de herói como atestou Luther Link em O Diabo: a máscara sem rosto (LINK, pg. 25-26, 1998) foi convertido em possessão por um ser maligno. Mas, a demonização iniciou-se bem antes da própria Igreja.
No século II a.C em Roma o culto a Baco era ao mesmo tempo incorporado e negado. Por ser um resquício da cultura grega, o culto a Dionísio, foi sendo assimilado pelos romanos. Porém, o crescimento na comunidade de adeptos de Baco que pejorativamente eram vistas como heréticas pelo senado romano, devido a seus rituais de orgias e homossexualismo e até possíveis sacrifícios humanos levou a medidas extremas de prender e expulsar de Roma e até ações violentas de morte aos cultuadores de Baco.
De certa forma a maneira como os romanos culturalmente viam outras culturas de forma negativa, porém sofrendo sincretismo acabaram refletindo na Idade Média, tempos mais tarde. Se a Roma do século II proibia o homossexualismo e era totalmente favorável a formação familiar monogâmica e por vezes perseguia povos como os essênios e os hebreus. A Igreja repetiria ações semelhantes ao persistir na perseguição aos judeus e demonizando ritos de outras religiões (não podemos esquecer que a Inquisição e as Cruzadas foram modos de ataque da Igreja contra inimigos não cristãos).
Tudo isto por causa da Cristandade, a defesa dos ideais da Igreja, que incluíam a demonização e a destruição do ‘inimigo herege’. Os demônios que nem sempre se pareciam com as criaturas híbridas da arquitetura laica das igrejas góticas ou com as pinturas dos artistas mais fervorosos. O Diabo não possui uma face definida, aliás, de acordo com a necessidade da Igreja ele mudava de aparência: poderia ser o deus Baco, um deus babilônico ou mesmo um animal feroz. O que mais chama atenção seria a relação dúbia entre o Diabo e Deus: “Por inferência, o Diabo é usado por Deus, trabalha para Deus em certo sentido, não está em conflito com ele. Se isto parece teologicamente infundado, não obstante é a base comum da maioria das discrições do Inferno. Assim, não surpreende que a Igreja não tenha dado contornos nítidos à iconografia do Diabo. O mal do Diabo requer evasivas” (LINK, 1997, p. 21).
Outro ponto importante é o conceito de pecado, aliás, o termo ‘pecado original’ foi estabelecido pelo papa Tertuliano e a relação do homem com o Diabo sobre os erros humanos e como Cristo se tornou o centro da salvação humana. Para alguns teólogos como Agostinho e Tomás de Aquino, havia um resgate a se fazer que era resultado do pecado e da justiça divina, e por outro lado uma dívida entre Deus e o Diabo. Enfim, o que permaneceu é a crença do resgate o que influenciou escritores que debruçaram sob o tema –o próprio Dante era um destes casos.
Para o homem do mundo híbrido laico-cristão, recorrer seja a qualquer uma das forças não era ruim. Pelo contrário, talvez o conceito de mal fosse o grande ponto de discussão, já que o próprio conceito de demônio nem sempre designava algo prejudicial para as culturas não cristãs. A própria Igreja não consegue distinguir a ação do mal praticando a Inquisição, onde milhares eram mortos na fogueira, ou incentivando as violentas cruzadas. Tudo por uma afirmação de fé no belicismo. Em destruir o ‘difamador’, o que era a tradução literal para o Diabo. Realizar o mal em favor de um bem maior não parecia contraditório para os homens da Idade Média.
O conceito de mal estaria bem melhor estabelecido nos dias de hoje, mas, não ainda bem delimitado no comportamento humano ou na ação dos seres superiores com bem coloca o estudioso Jeffrey Burton Russel em seu livro O Diabo: A percepção do Mal da Antiguidade ao cristianismo Primitivo (1991): “A essência do mal é a violência contra um ser senciente, um ser que pode sentir dor. O importante é a dor. O Mal é percebido logo pela mente, e sentido imediatamente pelas emoções; é como um ferimento causado deliberadamente. A existência do mal não exige maior prova: existo, portanto sofro com o mal” (RUSSEL, 1991, p. 01).
O belicismo seria responsável por criar personalidades únicas em meio à sociedade medieval, no caso os eremitas e os monges. Enquanto os monges se abrigavam em conventos perto da cidade e às vezes suscitavam descrença e duvidas na população por atitudes que colocavam a fé na Igreja em xeque. Os eremitas ou anacoretas tomavam a fé cristã ao pé da letra, se isolando e se abstendo do mundo material. Muitos deles se dirigiam para o deserto assim imitando a Cristo que foi para o deserto ao ser tentado pelo Diabo, como estava descrito no Evangelho de São Mateus. O mais popular destes eremitas foi Santo Antão (251-356) ou Santo Antão do Egito, considerado o pai dos monásticos.
Sua vida se tornou lenda entre as comunidades da Idade Média, fazendo dele um ícone de fascinação para escritores e pintores do período. O misto de ter sido tentado pelo Diabo e depois realizado milagres fez de Santo Antão um símbolo do belicismo. (continua)
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